SOBRE O RACISMO DO MOVIMENTO VEGANO

(Só pra me localizar: eu sou uma mulher preta que não se alimenta de carne, leite, ovos e derivados por acreditar que, desta forma, me sinto mais próxima às práticas alimentares de meus ancestrais. Não me digo mais “vegana”, porque “veganismo” é um termo ocidental. Eu sou mulher africana e rejeito toda e qualquer identidade, ideologia, movimento, valor ou seja lá que diabos o ocidente criou. Vamos, pois, ao texto.)

É comum o movimento vegano, que é majoritariamente branco e elitista, criticar o candomblé e o consumo de carne, leite e derivados por pessoas pobres (quase sempre pretas) acusando-as de nazistas. Eu nem vou entrar no mérito da imbecilidade que é essa afirmação, porque obviamente, não vou ficar aqui defendendo meu povo pra branco ver. A melhor defesa é mesmo o ataque, então analisemos o grande exemplo que a branquitude tem a nos dar no que tange a relação com a natureza e o cuidado com os animais.

Como sabemos, na “pré-história” e na antigüidade, os povos tradicionalmente agricultores eram os povos pretos africanos (clima ameno, muitas terras, água potável…), enquanto os europeus eram povos tipicamente caçadores (afinal de contas, não havia como plantar no mundo de gelo que cobria a europa nesse período!). A cultura de caça européia tem intima relação com a violência característica da cultura branca (esses que destruíram, saquearam e colonizaram o mundo todo e agora querem pagar de civilizados em cima dos nossos terreiros) – Para ler mais sobre isso, ver a teoria dos dois berços de Cheikh Anta Diop.

No intuito de fugir da vergonha que é a europa, alguns veganos brancos querem nos dar aula, afirmando que seu veganismo não é de origem europeia, mas indiana. Mas, minha gente, de onde vêem os povos indianos se não da África? A região que hoje é a Índia foi primeiramente habitada por povos provenientes da Etiópia (África), e adivinhe? Eles eram pretos! Incrivelmente, quando os povos brancos arianos invadem a Índia transforma os povos pretos em “dálits” a fim de destruir a sua cultura, que incluia uma alimentação de origem vegetal. (Vejam que a perseguição desses demônios para com a gente não é de hoje. Acontece que, em si tratando de valores, quando eles estão vindo com o caju, já estamos voltando com as castanhas.)

A branquitude que hoje nos critica é a mesma que disseminou o consumo de carne vermelha a partir da invasão do Egito (eles não sabem, mas o Egito é preto, e fica na África. Ou pelo menos era, até a falta de melanina invadir e destruir quase tudo). Outra afirmação comum que eles fazem é que machismo, racismo, especismo (etc…) são opressões semelhantes (o que, realmente, é absurdo, mas não vou explicar isso aqui, é assunto pra outro texto). Mesmo que essa afirmação fosse verdade, é necessário dar a César o que é de César (literalmente) e reconhecer que enquanto a gente estava no Egito plantando, se alimentando principalmente de vegetais, com mulheres pretas reinando no seu matriarcado (a primeira rainha da história foi uma mulher preta chamada Nitócris que reinou no Egito mais de 2 mil anos antes de Cristo nascer), os europeus estavam caçando predatoriamente e arrastando suas mulheres pelo cabelo em meio ao gelo (verdade histórica inquestionável). Logo, da pra saber a origem do racismo, do machismo e do especismo, não é mesmo?

Chegando na dita contemporaneidade, muito antes da europa branca maravilhosa civilizada inventar os termos “veganismo” e “especismo”, a cultura rastafári, décadas antes, já falava de uma alimentação livre de carne. Mas obviamente, esses néscios não haveriam de saber isso, afinal de contas, para eles o povo preto não conta na história da humanidade (a não ser quando o assunto é implicar com os terreiros). Mais uma vez, tem-se aí o protagonismo da Etiópia e principalmente da Jamaica (veja que a limitação ocidental é tamanha que pra eles ser rasta é usar dreads. Me-dí-o-cres!).

Não vou falar da SACRALIZAÇÃO (inclusive para alimentação) que ocorre nos terreiros (não se trata de sacrifício) porque eu acho uma afronta ter que ficar explicando pra branquitude que nunca pisou os pés numa Casa o que ocorre ou deixa de ocorrer lá dentro. Entretanto, como sabemos, as concepções de vida e morte deles não é a nossa, e, enquanto europeus e eurodescendentes tem sua cultura baseada na tese aristotélica da “cadeia geral dos seres” (que hierarquiza os seres vivos colocando o ser humano no topo e os animais na base), a concepção africana é de unicidade dos humanos com os animais, plantas, minerais e com a natureza em geral. Agora veja a diferença e me diga quem tem que dar aula pra quem. Realmente, 1 festa de boiadeiro, 1 vez no ano, deve ser a priorização urgente do movimento vegano. Afinal de contas, quem vai mexer com os grandes abatedouros que matam centenas de milhares de bois diariamente sob a ritualistica judaica, que até vem gente de Israel pra inspecionar se está correto? O barato é ser racista e implicar com os pretos, né não?

Quanto a criticar as pessoas pobres que comem carne, é muito fácil falar quando não veio de um povo que comeu lixo, né? Minha mãe é uma mulher preta que comeu lixo na rua, e eu, que não como carne, quando chego na casa dela, vou sim comer o pirão de rabada que ela prepara dando graças a Jah por hoje ter o que comer. Gostaria de lembrar, ainda, que muitos povos pretos sequestrados para o Brasil não se alimentavam de carne. Acontece que a carne seca e restos de boi e porco (a partir do qual fizemos feijoada, veja como somos mesmo um povo sensacional) eram as poucas coisas que os avôs e bisavôs desses militontos nos permitiam comer. Muitos dos povos passaram a comer carne depois da escravização (na verdade a gente não comia carne, mas os restos caídos das mesas desses senhores) e agora eles querem dar aula de como os pretos devem ou não se alimentar. Nunca vi militância mais descarada.

Portanto, acredito que a branquitude do movimento elitista-vegano-europeu-civilizado-uma-ova, deveria sentar a bunda branca-talquinho na cadeira e estudar sua própria história (sem distorções!). Obviamente isso não vai acontecer por que, né? A europa é uma grande vergonha e, obviamente, falta honestidade. Meu recado vai para os irmãos e irmãs pretos que estão caindo nessa conversa branca: a resposta, irmandade, está na nossa história, na nossa ancestralidade. A europa não tem status moral pra ensinar nada a ninguém. Nossa relação com a natureza sempre foi outra (inclusive a relação dos povos caçadores que existem/existiam, sim, em África, mas eu falei caçador e não destruidor, com uma relação especial com a natureza) e a história ta aí pra nos mostrar qual foi o povo que destruiu rios, lagos, florestas e poluiu mares, acabando com fauna e flora, em nome do suposto “progresso”. Olha, me deixe, viu? Parafraseando o Honorável Robert Nesta Marley: O OCIDENTE TEM MESMO É QUE MORRER.

Feliz suposto 2016.

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Na foto: meu acarajé da Bahia, que, como sabemos, é vegetal e delícia. Comida de preto! Alguém me apresenta uma comida europeia deliciosa e vegetal como essa? Rai ai, viu?

acaraje

21 comentários sobre “SOBRE O RACISMO DO MOVIMENTO VEGANO

  1. A alienação desse “movimento” vegano é algo muito gritante. Primeiro por ser de fato, mais uma desculpa para brancos burgueses se sentirem superiores ao resto do mundo. Segundo pela total inutilidade do “movimento” em si, pois, ataca o consumo e não o meio de produção, ou seja, apenas corre atrás do próprio rabo e jamais chega a lugar algum. E para mim o mais importante: é característica do mundo capitalista apropriar-se de tudo que existe, inclusive daquilo que a priori, é contrário a ele. Desse forma a necessidade humana de organizar-se em torno de um ideal foi também apropriada e transformada em algo vazio e inútil que não ponha o sistema de fato em risco. E, dessa forma, surgem demandas como a vegana, que massageia o ego dos burgueses brancos dando algum “sentido” a suas vidas e imergindo-os na ilusão de que estão fazendo algo útil pela coletividade, quando na verdade, estão é prestando um grande desserviço, pois, as demandas sérias ficam muito comprometidas pela existência de espaços de higienismo vazio como este.

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  2. Sou Vegana, branquela e com inveja dos lindos cabelos que não pude herdar…frequentadora também de terreiros além de muitos templos, filha, neta, bisneta de uma misturança de gente colorida e de toda parte, amiga de gente de tudo que é jeito, de todo credo, toda cor e todas as opções e escolhas… e amei o texto. Tem gente que precisa muito ler, refletir… Adiante!!!! Compartilhando em 3, 2, 1…

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  3. Amei o texto. Cada vez que leio uma interpretação dessas. Lúcida, lúdica, que se tira das entrelinhas e citações, que foi metodicamente pesquisada, fico em estase. Paro e repenso meus conceitos , meus valores. Quero ler mais sobre isso. Até por que aprecio muito alimentação vegetariana e cultura indiana. Inclusive pratico meditação e respiração a partir da orientação de um lider espiritual indiano. E estou amando o resultado na minha mente, no meu corpo e na minha alma.

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    1. Obrigada, Maria. Acredito que quando reaprendemos a voltar o olhar pra nossa história e ao resgate de nossas raízes, invariavelmente, cuidamos física e mentalmente de nós. Seguimos.

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  4. Nossa Gilza, parabéns pelo texto.

    Eu sou candomblecista e não como carne e evito leite e ovos. De fato, o veganismo tem se mostrado movimento branco, elitista e bastante preconceituoso.
    Eu, pessoalmente, tenho optado pelo vegetarianismo e veganismo (depois de ler o seu texto, vou repensar nesta definição) pois a forma ocidental e industrial de criação de animais para a produção de leite, ovos e abate é cruel demais. Comemos o medo e o sofrimento de animais que desde sua concepção atendem a fins lucrativos que os podam de uma existência digna.
    Eu sou de uma família rural nordestina e também jamais deixarei de comer produtos animais de lá, pois sei que a relação que minha avó, meus tios e tias têm com a criação de animais é totalmente diferente da lógica exploratória das empresas de alimentos. A mesma coisa ocorre no terreiro, jamais negarei o axé de um animal sacrificado aos orixás, em que há uma comunhão do ser humano com as forças da natureza.
    Foram poucas vezes que bati boca com veganos, quando fiz isto, fiz por conta do candomblé. E não vale a pena, a suposta supremacia que eles acreditam ter, não os ajudam a dialogar nem a compreender a diferença de comunhão de exploração.

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  5. Que texto excelente. Nestas férias resolvi reler algumas obras e estou terminando a leitura de “Veias abertas da América Latina” Eduardo Galeano nova edição. Após a leitura do seu texto fiquei mais tranquila e estou relaxando por ter encontrado alguém que ousa e tem coragem de relatar o mesmo pensamento meu. Parabéns!

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  6. Gostei da honestidade, franqueza e conhecimento da história da África e da culinária africana da autora do texto acima. O Brasil de mulheres negras como essa , que tenham coragem de debater e mostrar o lado da Verdade.

    Abraço

    Gilka Santos

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  7. AHUAHUAUHAUHAHUAUHAUHAUHUHAUHAUHAUHAAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAUHAHUAUHAUH.
    Parabéns, irmã. Eu ri. 🙂

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  8. Arrasou na explicação, texto muito bem escrito e esclarecedor. Acho que deveríamos estudar mais sobre a cultura afro, pois é belíssima e berço das outras civilizações.

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  9. Minha cara, li o seu texto, melhor: me deliciei com o seu texto. Foi um ar fresco e pesado ao mesmo tempo. Vou repassa-lo a todos que eu puder. Abraços.

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  10. Encantada, apaixonada e profundamente inspirado por cada vírgula, por cada palavra, por cada linha, por cada parágrafo!!!!
    Parabéns!!!!
    Um beijo !!!
    Clarinha

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  11. Não conhecia seu blog, mas por meio deste texto achei muito interessante. Aqui no Brasil, pelo menos nas capitais, não temos acesso à literatura ou aos costumes africanos, tanto na tv, qto na escola, no serviço, em lugar algum, e fiquei muito contente em saber q nossos ancestrais, o povo da África, era predominantemente vegetariano. Agradeço compartilhar este conhecimento.

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  12. ola moça. gostei do texto. mas nos indigenas javaes pescamos e caçamos, nem por isso somos violentos, cultivar a terra.veio depois, beijos mil

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    1. Olá, Ju. Importante receber este retorno, entretanto não faço minhas colocações na perspectiva dos povos indígena, por isso é importante que seu povo escreva e se coloque nestas questões, isso diz sobre nosso protagonismo histórico, não é mesmo? Minha perspectiva é afrocêntrica e é assim que me coloco. Seguimos compartilhando 😉

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