7 mitos sobre o mulherismo africana

Anin Urasse

Resposta ao texto “Mulherismo africana: hoje não”

(Esse texto é uma resposta ao texto supracitado. Para facilitar a exposição das ideias, o dividi em tópicos. Vamos a eles.)

mulherismo

 MITO 1: O mulherismo africana é uma teoria africana antiga que não se aplica ao contexto brasileiro:

O mulherismo africana tem como uma das suas principais teóricas uma mulher preta africana nascida nos EUA, no século XX, mais precisamente em 1945, a Cleonora Hudson. Ele surge, assim, no contexto diaspórico (assim como o conceito de “negritude” tão utilizado atualmente). Se o mulherismo, enquanto teoria PRETA nascida no século XX não nos engloba, seria o feminismo, uma teoria BRANCA nascida no século XIX, a teoria que nos englobaria? (Deixo a pergunta.)

 MITO 2: O mulherismo é machista

O mulherismo africana é, essencialmente, teorizado por mulheres pretas. Estariam essas mulheres reproduzindo o machismo? Gostaria de demonstrar as diferenças da análise feminista e mulherista com um exemplo.

No terreiro, a obrigação de servir a comida é feminina. Na minha casa também era assim: cabia a minha mãe colocar a comida do meu pai, a minha e das minhas irmãs e também dos vizinhos (em casa de preto, todo mundo come!). Uma análise feminista irá apontar o sexismo desta prática, dizer que trata-se de uma exploração feminina, expressão do patriarcado, exemplo de comodismo do homem preto.

A análise mulherista é diferente porque busca identificar qual a origem das diferenças do papel homem x mulher. No terreiro (e também na casa da minha mãe) é a mulher que coloca a comida porque é ela que tem o poder de nutrir a comunidade. Somente a mulher é vista como aquela que tem o dom de repartir a comida de maneira igual. A comida é sagrada, é de todos. É a mulher que decide quem vai comer primeiro, quem vai comer por último e SE aquela pessoa irá comer. Assim, não se trata de uma expressão de subalternidade, mas de poder. Isso é essencialmente africano.

 MITO 3: O mulherismo passa pano pra machista

A teoria a qual a gente está embasada condiciona o nosso olhar. Assim, o feminismo nos condiciona a olhar toda e qualquer diferença homem x mulher como exploração. Um das coisas que o mulherismo propõe é: paremos de olhar toda e qualquer diferença homem x mulher como nociva! (E talvez seja esse o motivo que acusam o mulherismo de machismo).

Voltemos ao exemplo do terreiro (porque é o que nós temos de mais africano por aqui, né?). Somente aos homens é permitido ser Ogã. O candomblé é por isso machista? A diferenciação dos papéis homens x mulher é nociva no patriarcado (branco) porque coloca as mulheres em condições de subalternidade, mas nas comunidades africanas tradicionais (ou nos ritos africanos tradicionais) as mulheres têm o poder de comando. Nossas comunidades são matriarcais. As ialorixás são o exemplo mais nítido disso, ou aquela tia da família negra à qual todo mundo recorre. Já perceberam que nunca é um “tio”?

Com isso não estou dizendo que o homem preto não possa ser machista. Ele é (e muito!). Mas esse machismo é, nada mais, que a interiorização pelo homem preto, do patriarcado branco. Em última instância (e é isso que o mulherismo irá dizer), o machismo do homem preto é uma expressão do racismo internalizado. O mulherismo propõe desconstruir isso, com homens e mulheres JUNTOS. JUNTOS, SIM, porque historicamente, nunca estivemos separados. Dou a mão aos meus irmãos negros inclusive quando eles erram. Alguém pode me apontar objetivamente quais são os privilégios que os homens pretos têm na nossa sociedade?

 MITO 4: Os/as mulheristas e afrocentrados/as falam de uma África maravilha

É preciso entender o mulherismo africano como uma teoria que está dentro de um contexto maior: a afrocentricidade. E quando a gente fala de afrocentricidade, pan-africanismo, etc…, estamos tentando voltar a uma África ideal, mística, perfeita? NÃO! Talvez seja essa uma das acusações mais infundadas contra o mulherismo e a afrocentricidade. Vou citar uma alegoria de Kabengele Munanga pra ilustrar a afrocentricidade mulherista.

Se você pegar esculturas de diversos povos africanos diferentes (do norte, do leste, do extremo sul da África) e levar para uma exposição na Europa, as pessoas saberão identificar que aquelas esculturas são africanas. Existe alguma “coisa” que caracteriza todas essas esculturas e permitem que povos geograficamente separados tenham suas expressões reconhecidas como una. Essa “coisa” é a africanidade. O oposto da africanidade é o modo de ser greco-romano. O que os/as afrocentrados/as propõem é o retorno aos VALORES africanos. E os valores africanos incluem a matriarcalidade, o respeito à natureza, o coletivismo social, etc..

 MITO 5: Os/as afrocentrados/as não são realistas. Se dizem africanos, mas nós somos negros/as brasileiros/as.

Eu, mulher preta em diáspora, não me sinto contemplada com o estado nacional brasileiro da forma como ele foi criado (um modelo europeu de estado, diga-se de passagem). Não consigo enxergar o que eu tenho em comum com os igualmente “brasileiros” brancos classe-média para além do fato de termos nascido neste solo tomado, saqueado e forjado. “Brasil” é uma construção geográfica e ideológica, não uma essência. Esse país nunca nos quis, nunca nos incluiu e genocida o nosso povo diariamente. O padrão hegemônico brasileiro é branco, portanto europeu. Nascer no brasil nos torna brasileiros? Nós, pretos e pretas do brasil, somos cidadãos de segunda classe, estrangeiros na “nossa” própria terra. Ou não?

A minha pele preta é a minha essência. Eu sou preta, não verde e amarela. Em resumo: prefiro a afrocentricidade à brasilidade, porque a brasilidade é da ordem da brancura, ou da ordem da mestiçagem que me apaga. A brasilidade nunca incluiu os valores pretos. A brasilidade é gilbertofreiriana.

 MITO 6: O mulherismo é heteronormativo

Como eu disse, o mulherismo é afrocêntrico. Seriam estas teorias heteronormativas e homolesbotransfóbicas?

É impossível discutir sexualidade numa perspectiva africana sem recorrer à espiritualidade. Impossível. O que já nos traz um problema: o ocidente nos fez desconfiar da espiritualidade e ela quase nunca é levada em consideração nas discussões que travamos.

O “desejo sexual” não gera identidade em África. Por isso me faltam termos até para falar da questão. Um exemplo: na África Ocidental, há povos em que, segundo sua cosmologia,  mulheres que incorporam espíritos masculinos devem se casar com mulheres. Essa mulher pode ser chamada de “lésbica”?Entende que não cabe? A forma como o gênero é pensado, inclusive pela teoria queer, não diz sobre a nossa ancestralidade. A própria experiência da sexualidade nas comunidades africanas é diferenciada. Há, sim, uma valorização do papel da mulher preta enquanto portadora do ventre original, aquela que está ligada à terra, porque é dela que vem a vida, mas eu dizer que o mulherismo é heteronormativo é uma aberração teórica. É interpretar com uma teoria branca (feminismo) o que é preto.

O papel da mulher preta nas comunidades africanas nunca foi de mera procriadora. Ademais, o conceito de família africano nunca foi pai-mãe-filho. NUNCA FOI! A heteronormatividade é JUDAICO-CRISTÃ. Por favor, tirem suas análises brancas do meu povo preto.

 MITO 7: O feminismo negro nos contempla mais que o mulherismo africana

Pra mim, (por favor não se ofendam), feminismo negro não existe. É como eu querer falar de marxismo negro. Neoliberalismo negro. Psicanálise negra. Gente: É TUDO TEORIA BRANCA! É ocidental em sua essência! Desde a sua base de análise!

Eu respeito as irmãs que se dizem feministas pretas, mas eu discordo veementemente de pressupostos como a interseccionalidade e a forma de analisar a sociedade como numa pirâmide . O feminismo é uma teoria branca nascida no século XIX. Ponto. Fazer remendo no feminismo e chamá-lo de negro é concordar com uma teoria que nasceu quando ainda éramos escravas e nunca se importou com a gente, achando que ela vai dar conta das nossas demandas: NÃO VAI!

Eu prefiro adotar uma teoria preta, reconhecê-la como em construção e tentar aprimorá-la, do que partir de uma teoria que já nasceu equivocadamente ocidental. Como o objetivo do texto não é desconstruir o feminismo negro, eu vou finalizando por aqui. Mas de uma coisa fiquem certos/as: se quando o feminismo nasceu, as mulheres negras escravizadas os tivessem incorporado nós estaríamos todos FODIDOS/AS! É impossível falar em emancipação feminina num contexto em que homens e mulheres pretos são dilacerados pelo racismo. Não dá pra falar em emancipação de Cláudias sem emancipação de Amarildos.

 

PARA CONCLUIR

Bom, é isso. Espero que o texto desperte debates interessantes, sem rixas pessoais. O texto original que inspirou este texto está disponível nas quebradas do facebook.

Espero poder trocar ideias com a autora. Beijos afrocêntricos. :*

21 comentários sobre “7 mitos sobre o mulherismo africana

    1. Irmã. Só uma pergunta: Senti que houve uma contradição no Mito 1, intitulado “O mulherismo africana é uma teoria africana que não se aplica ao contexto brasileiro”
      Cleonora Hudson, precursora do mulherismo africana, como você mesma aponta, foi nascida e criada nos EUA. Você, se dizendo mulherista e criticando a teoria feminista negra com o argumento de que o feminismo é “ocidental” em sua essência não faz sentido. Uma vez que a teoria mulherista criada pela a Cleonora também advém do Ocidente. Como você apontaria então essa diferença? Abraços virtuais.

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      1. Olá! Desculpa pela demora em responder. A questão não é o local físico onde a teoria nasce, mas seus pressupostos. Vou dar um exemplo pra ficar mais nítido. Quem é o ocidental: um pastor da Igreja Universal de Moçambique ou uma Babalorixá nascido no Brasil? Esse é o ponto. Clenora Hudson é nascida nos EUA, mas estruturou o mulherismo a partir de pressupostos históricos e filosóficos africanos, Utilizando a filosofia africana, em conjunto com mulheres do continente africano. Não é o caso do feminismo, cujos pressupostos partem da cultura europeia,.

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  1. ago, reflexão urgente ,para tempos de chumbo de nós re-afirmarmos como ,com e para o nosso povo preto seu blog um referencial teorico um intrumento para nossa pratica cotidiana em nossas comunidades repletas de comunitarismo e ausentes de politicas publicas afirmativas é
    aprendendo ensinando , mojubá irmã,

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  2. Os seus textos causam em mim sentimentos dúbios e confusos, amor, ódio, alegrias confusas, Vamos lá, jamais serei a moça que vai só agradecer, meu intimo é questionar tudo e todos. Fui criada na igreja evangélica e seu texto no começo é idêntico ao que é passado lá, foi inclise algo que me afastou do mulherismo africana de cara, o feminismo não contempla a mulher evangélica por que Deus instituiu papeis diferentes e complementares para o homem e para a mulher, onde nenhuma é maior que o outro. Este discurso é bonito e faz sentido, porém máscara o machismo sofrido no meio cristão, assim como você que a culpa e no racismo e patriarcado branco eles alegam que a culpa é do pecado. Bem tenso! Os hebreus são retratados como africanos não sei se surge daí a semelhança ao se falar do papéis diferentes e complementares. Sobre não se sentir brasileira é complicado, não sei se eu seria aceita em africa, por ser parda convivo com o sentimento de não pertencimento desde que me entendo, não sou plenamente aceita pelos negros e jamais pelos brancos. Acho que não seria aceita em país nenhuma do mundo. Melhor definição é em diáspora mesmo, sem lugar para ir ou volta ;(

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    1. Irmã, o cristianismo é uma deturpação dos sistemas espirituais africanos. As semelhanças que talvez você possa encontrar, advém disso, mas, obviamente,a interpretação cristã se equivoca.
      Ninguém aqui vai defender o machismo, mas entender de onde ele vem é fundamental para combatê-lo. Se o diagnóstico é errado, as estratégias de enfrentamento também serão.

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  3. Anin, gratidão por você compartilhar seu conhecimento de maneira a aproximar e não a criar um abismo ainda maior. Tenho buscado entender melhor o mulherismo, mas confesso que para mim ainda é bastante difícil. A primeira coisa que acho complicada é isso de africana em diáspora, porque me faz pensar nas comunidades indígenas que são até hoje dizimadas e que assim como o povo negro também fazem parte de minha ascendência. Como o mulherismo lida com os nativos da terra? No intuito de engloba-los na luta?
    Outra dúvida é sobre o candomblé, no mito número 3. Existe a possibilidade da mulher, se assim ela quiser, se tornar Ogã? (Já peço desculpas em antecipado caso tenho usado algum termo incorreto, não conheço muito sobre o candomblé)
    E mais uma vez muito obrigada 🙂

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    1. Olá! Irmã, o mulherismo não dita nada. O mulherismo nos manda olhar para trás e ver como éramos. Então… como as mulheres africanas que vieram traficadas para esse territorio lidavam com os povos nativos africanos? Essas mulheres, em parceria com seus homens, criaram o culto de cabloco dentro do candomble, umbanda, jurema, por exemplo, pra saudar essa ancestralidade. E se essas mulheres e homens não ignoraram a ancestralidade indígena pq a gente ignoraria? Eu tenho muito cuidado com esse lance de “devemos englobar os indígenas na luta”. Eles querem ser englobados na luta? De que luta estamos falando?

      Sobre a segunda pergunta… mulheres não podem ser ogã assim como homens não podem ser equede. Isso não gera uma hierarquia. Equedes e ogãs são igualmente importantes, e as pessoas que são iniciadas no culto sabem o porque disso. O que me incomoda é a gente estar previamente disposto a criticar as nossas tradições, simplesmente por criticar, sem conhece-las a fundo. Quais os benefícios que uma mulher teria em ser ogã? Quais as consequencias negativas? Esse é o ponto. As regras existem por um motivo FUNCIONAL, espiritual, não são um fim em si mesmas. Por que uma mulher quereria se tornar algo que sua tradição orienta que ela não seja? Por um desejo, um capricho individual? Olha o pensamento ocidental aí…

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      1. Muito obrigado pela disponibilidade e paciência para me explicar minhas dúvidas. Você comentou sobre os motivos funcionais, espirituais e tantos outros que regem o candomblé. Você tem alguma referência que possa ler sobre? Eu imagino que muito dessa religião vem da vivência prática, mas gostaria de entender mais sobre.
        Mais uma vez obrigada e se cuida

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  4. Olá Anin, fico feliz em poder ler textos tão cirúrgicos em seu blog. Minha irmã quem me deu a indicação de ler teus textos quando me surgiu a curiosidade de aprender mais sobre o pan africanismo (há um mês atrás) e, devo dizer, não consigo parar de ler sobre.
    Você teria alguma indicação de livros sobre pan africanismo e mulherismo africana?
    Não sei se você poderá responder meu comentário mas desde já agradeço!

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    1. Olá, tudo bem? Obrigada pelas palavras! Sobre o pan-africanismo, sugiro o livro “Discurso sobre a negritude” de Aime Cesaire. Sobre mulherismo africana, por enquanto só artigos mesmo, você os encontra fácil na internet pesquisando por Clenora Hudson e Nah Dove. Saudações africanas!

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